Usuário da internet há mais de dez anos, sou um internauta do bem. Através dela trabalho, leio jornais, livros, revistas, estudo, me divirto e faço amizade importantes, algumas delas até já deixaram de ser virtuais passando para o campo da realidade. Com esses amigos muito tenho aprendido, especialmente, depois que me tornei também um orkuteiro. Recentemente, respondendo a provocação (em versos) de uma amiga, fiz esta sextinha falando sobre essa grande rede mundial:
“Parece até alquimia
Essa importante invenção
Que aproxima as pessoas
Trazendo satisfação,
Amigos que nunca vi
“Vivem no meu coração”.
Um desses amigos é Hélio Crisanto. Nunca nos encontramos, mas pela intimidade que desenvolvemos através do bate-papo via MSN, parecemos vizinhos, daqueles de antigamente que se encontravam todas as noites para conversar por cima do muro do jardim, enquanto as crianças brincavam na calçada e as mulheres viam novelas.
Nossos primeiros contatos datam de uns três anos quando éramos participantes ativos das comunidades de poesia de Cordel do Orkut. Desiludidos pelo descaso como essas comunidade passaram a ser tratadas pelos seus “donos e moderadores”, ante o desvirtuamento de seus objetivos e ainda pelas agressões gratuitas, partidas de indivíduos que não estavam preparados para utilizar a Internet, essa ferramenta civilizada que aproxima os povos e encurta distâncias, desistimos. Hoje varamos as noites trocando versos, enquanto conversamos pelo teclado como velhos amigos.
Agora, Hélio me pede para escrever alguma coisa sobre a sua poesia, para inserção no livro Retrato Sertaneja, a ser lançado brevimente. Conheço o trabalho que ele vem fazendo que é de primeira linha e deve ser publicado para que os seus versos sejam preservados e não se percam na poeira do tempo, como tem acontecido com tantos portas bons.
A veia poética do meu amigo aflorou ainda muito cedo e vem se aprimorando cada vez mais, mostrando que sua criação nada tem de repetitiva, a não ser quando fala das saudades da vida no campo, como nesta décima maravilhosa:
Uma velha carroça abandonada
A palhoça que era o meu banheiro
As galinhas ciscando no terreiro
O carro de boi numa latada
No alpendre, a minha rede armada
Tudo isso recordo com saudade
Hoje vivo no luxo da cidade
Mas não deixo de lado o meu torrão
Na janela do velho casarão
Vejo o filme da minha mocidade
Seu pai, hoje aos 77 anos, foi o responsável pelo desenvolvimento do gosto do filho pela poesia popular. “Ele sentava numa rede e recitava versos de cordel pra gente, sem saber o bem que estava me fazendo”, diz Hélio, orgulhoso do pai, homem de uma memória privilegiada. A partir daí, o menino Hélio passava horas na feira, sob o sol causticante, ouvindo violeiros cantadores e emboladores de coco. Nascia ai um poeta que hoje faz apresentações em eventos culturais em teatros, colégios e clubes, participa de festivais de violeiros como cordelista, apresentando seus versos de extraordinária beleza, acompanhado do inseparável violão, pois ele entende que a poesia e a música nasceram juntas e assim devem permanecer.
Esse menino-poeta nascido num sítio nordestino, conhecendo as dificuldades causadas pela ascassez de água, apesar de viver hoje na cidade – Santa Cruz (RN) -, não esquece a dureza que enfrentou no início da vida. Diz com simplicidade: “Ainda hoje tenho um ombro mais baixo que o outro, de tanto carregar água pra família sobreviver”.
Como inspiração criador de motes para versos de Cordel, produziu esta pérola, cantando o drama de sua gente:
“No rachão da lagoa esturricada
Vejo um grilo cantando pra chover”.
E ele próprio compôs esta décima que é um brado de alerta do sertanejo, do nordestino, contra o descaso das autoridades (in)completa:
A barbárie da seca causa espanto
Gado morto, crianças moribundas.
As cacimbas sem água, já profundas,
Urubus revoando em cada canto
Sertanejo sofrido verte o pranto
Esquecido, sem ter o que comer
Não desiste da luta e quer vencer
As mazelas da vida flagelada
No rachão da lagoa esturricada
Vejo um grilo cantando pra chover.
Embora jovem, o poeta aconselha os de sua geração, baseado em observações feitas ao longo da vida, quando canta em tom de advertência:
Quem levou uma vida desregrada
Nos prazeres do fumo e da cachaça
Esnobando do tempo com pirraça
Se envolvendo com jogo e com noitada
Quem um dia viveu nessa cilada
Confundido prazer com liberdade
Foi escravo da vida e na verdade
Jogou fora, em vão, cada momento
A velhice é quem faz o pagamento
Dos prazeres banais da mocidade.
Assim é Retrato Sertanejo, um livro que vai marcar época, registrando a simplicidade e a inteligência de um jovem poeta potiguar que faz dos versos de Cordel a sua razão de viver, a sua bandeira de luta pela preservação da cultura popular do nordeste, que não deve ficar circunscrita apenas ao divertimento de turistas ocasionais.
Conheço bem a poesia de Hélio Crisanto e por isso recomendo o seu livro que, embora esteja limitado a uma edição modesta, dentro das possibilidades do autor, deve ser lido por todos aqueles que se interessam pela boa literatura nordestina.
[José Alberto Costa é jornalista, aprendiz de poeta e membro da Academia Maceioense de letras.]
Esse relicário se encontra no livro do meu grande amigo Hélio Crisanto chamado Retrato Sertanejo